Ana Carolina, lá no último andar

Foi no nono dia do mês de setembro há 31 anos, num cantinho tranqüilo de Juiz de Fora. Veio à luAna Carolina Souza, uma virginiana, geniosa e instável como tal. Apenas dois meses
depois faleceu seu pai, e a Música preencheu-lhe o posto e cedeu seu largo ombro para aliviar qualquer dor. A avó cantava em rádio, os tios-avós eram músicos, nada mais natural do que correr melodia no sangue. Em casa, os vinis eram quem mandavam e D. Aparecida, sua mãe, cantarolava pelos cômodos sucessos de Dalva de Oliveira. Ana treinou os ouvidos com Cartola, Geraldo Pereira, Lupicínio... e não à toa herdou dos antigos mestres do samba a inquietação da batucada. A menina já fazia do salão de cabeleireiro da mãe o seu palco, fingia ser microfone um simples rolo de cabelo e cantava versos de Caetano e cia.
Com a idade de apenas uma dúzia de anos, começou a tocar violão, assim de ouvido, inspirada pelo também mineiro João Bosco. Com o pandeiro também foi assim: aos 19 ouviu os batuques de Marcos Suzano, no disco Olho de Peixe, e quis tocar igual. Pegou um jeitinho aqui, outro acolá, e inventou seu próprio estilo. O cantar foi só conseqüência. E quem dera todas as conseqüências fossem tão sublimes assim... Começou profissionalmente na 18ª primavera, nos barzinhos da cidade, e o repertório era Jobim, Chico, Ary Barroso e mais quinhentos clássicos. Nesse cenário, Ana conhecera Luciana David, àquela época uma estudante de Comunicação, que gostou do que ouviu e se tornou sua eterna empresária. Para variar, surgiram convites de mais bares nas cidades vizinhas e lá iam elas a bordo de uma boa e velha Parati... As composições ficavam na gaveta, escondidinhas debaixo de um complexo de inferioridade.

Contudo, a preocupação com os estudos não minguou. Ana fez cursinho pré-vestibular e ingressou no curso de Letras, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Ao mesmo tempo, convidaram-na para shows maiores, como um no Teatro Municipal com produção da atriz Zezé Motta e a abertura do concerto da Orquestra Internacional de Ray Conniff, em 97. Depois de um dos muitos shows em Belo Horizonte, um rapaz chegou ao camarim com a letra de uma música, que compôs enquanto a assistia. Ele era o compositor gaúcho Totonho Villeroy e se tornaria um dos seus melhores amigos e parceiros, a música era "Garganta", traduzia muito bem sua personalidade e seria seu primeiro sucesso. "Depois me lembrei que conhecia Totonho, eu tinha ido a um show dele no Rio, no Mistura Fina, e adorei, tanto que comprei os dois discos independentes dele”*, lembra ela.
Até que desembarcou naquela cidade, em fins de 98, num capítulo decisivo para dar uma guinada nos rumos dessa sua biografia. Apresentou-se no Hipódromo e no famigerado bar Mistura Fina, e na platéia deste último estava uma outra Luciana, de sobrenome famoso: a rebenta de Vinícius de Moraes. Uma fita demo nas mãos da moça bastaria. Depois de quinze dias, com propostas de duas gravadoras acumuladas nas mãos, Ana já estava sentada assinando com a BMG. Mudou-se imediatamente para o Recreio dos Bandeirantes, abandonou o sexto semestre da faculdade e começou a produção do seu primeiro CD, Ana Carolina, que chegou às lojas em abril do ano seguinte. Ana cercou-se de grandes músicos, assinou arranjos, tocou guitarra em algumas faixas, colocou 5 ótimas composições suas, gravou a música de Totonho e regravou duas de Chico ("Retrato em Branco e Preto" e "Beatriz"), seu ídolo-maior e por quem foi imediatamente convidada para emprestar a voz a duas belíssimas músicas do Songbook Chico Buarque, “Mil perdões” e “Eu te amo”.

Naquele mesmo ano, encaixou duas músicas em novelas das 7 da TV Globo. "Garganta" foi parar em Andando nas Nuvens e "Tô Saindo" parou na sucessora, Vila Madalena. A primeira estourou nas rádios de todo o país, fez Ana despontar e provocou uma extensa turnê. "Nada pra Mim" - uma inédita composta por John, do mineirinho Pato Fu - integrou a trilha de Malhação, em 2000, mesmo ano em que veio a surpreendente e merecidíssima indicação à primeira edição latina do Grammy, na categoria brasileira de melhor álbum pop contemporâneo. O prêmio quem abocanhou foi Milton Nascimento, por Crooner, mas tudo bem. Ana Carolina ainda ganhou disco de ouro pelos 160 mil discos vendidos e foi apontada como "a grande promessa da MPB", comparada com Cássia Eller e Zélia Duncan. Nada mal.

Depois da virada do milênio, em abril de 2001, o segundo CD, Ana Rita Joana Iracema e Carolina, veio mais autoral, com 10 letras de próprio punho. Já chegou às lojas com 100 mil cópias vendidas, ficou duas semanas como o 2º mais vendido no Rio e em Sampa, em 15 dias já foi contemplado com disco de ouro, depois platina, e ultrapassou a marca de 300 mil exemplares. Tanta loucura foi por causa do hit "Quem de nós dois" (versão de Ana e Dudu Falcão para um sucesso italiano dos anos 90), que fez parte da trilha de mais uma novela das 7, Um Anjo Caiu do Céu, e simplesmente foi a música mais executada no país naquele ano! Só quem é surdo não escutou.

No mês seguinte ao lançamento, às cinco da manhã de 1º de maio - uma data trágica desde 1994 -, Ana saía do apartamento de Paulinho Moska no Leblon em direção ao seu, na Barra, quando na Av. das Américas perdeu o controle do seu Mercedes Classe A, que se espatifou contra um poste. Ainda lúcida, foi resgatada por uma ambulância do Corpo de Bombeiros e internada na UTI do Hospital Barra D'Or. Houve fratura da tíbia e um corte na cabeça, bem acima da orelha, onde foi necessário dar 30 pontos e raspar uma pequena parte do couro cabeludo. Por sorte, nada grave. Ufa... O início da turnê do disco precisou ser adiado, mas a cantora voltou logo ao batente e, mesmo um pouco podada pelo gesso na perna esquerda, fez shows inesquecíveis.

Êita ano corrido! Veio "Ela é Bamba" na novela seguinte, As Filhas da Mãe; duas composições ("Velas e Vento" e "Margem da Pele") para a trilha do filme Amores Possíveis, de Sandra Werneck; música-tema ("Grito Sozinha") no filme Condenado à Liberdade, de Emiliano Ribeiro; convite para uma participação especial cantando “Mama Palavra” no álbum de João Bosco, Na Esquina Ao Vivo; e a composição de "Pra Rua me Levar" a pedido de ninguém menos do que Maria Bethânia para o disco desta, Maricotinha. Em outubro do ano seguinte, gravou um CD com versões em espanhol dos sucessos "Quem de nós dois", "Garganta" e "A canção tocou na hora errada", visando o mercado da parte norte da América.

Em agosto de 2003, seu terceiro filho, batizado de Estampado, vem ao mundo. A mãe, orgulhosa, diz que ele tem a sua cara. O caçula é mais rock'n'roll, o violão nervoso de Ana guia todos os seus batimentos, e os gritos são mais do que confissões: uma rajada de voz vem bombeada pelo coração. São 13 canções próprias e novos parceiros, como Chico César e Seu Jorge, que introduzem seus DNAs e deixam o rebento bem mulatinho e cheio de suingue. Emplaca hits em três novelas das 8 consecutivas: a baladinha "Encostar na tua" em Celebridade; a explosiva "Uma louca tempestade" em Senhora do Destino; e a calminha "Pra Rua me Levar", atualmente em América. Além dessas, "Nua" integrou a trilha de Como Uma Onda, novelinha das 6. É o bastante para alavancar a venda de quase 500 mil CDs e deixá-lo 80 semanas seguidas no ranking dos mais vendidos. Até o “eu vou de escada pra elevar a dor”, refrão do carro-chefe “Elevador”, mesmo com o trocadilho - maldito para alguns -, grudou que nem chiclete na boca do povo.

Lança então 2 DVDs, ambos platinados, com venda superior a 50 mil cópias cada. O primeiro é Estampado, um documentário que contém os bastidores da gravação do disco, a fase de composição, gravação e finalização, bate-papos com João Bosco, Chico Buarque e Maria Bethânia, uma reunião entre amigos animadíssima no apartamento da cantora, a composição grupal de "Perdi, mas não esculacha", leitura de um texto da escritora Elisa Lucinda, performance de voz e violão no estúdio, além de um pequeno show ao ar livre, no Largo da Carioca, Rio. Tudo dirigido pela fotógrafa Mari Stockler (do documentário Gaivota, 99). Meio frustrante para quem quer mais música e menos conversa.

Para agradar a gregos e troianos, vem o segundo: Estampado - Um Instante Que Não Pára, totalmente incendiário. Gravado num Claro Hall lotado com 9 mil histéricos, apresenta uma versão chiquérrima do show de divulgação do disco, com direito a quarteto de cordas, à harpa dulcíssima de Cristina Braga e versos de E. E. Cummings e Benjamin Constant. Isso tudo além da versão caprichada de "Vestido Estampado" só com voz, violoncelo e isqueiro, de arrepiar qualquer mortal que já deixou ou foi deixado. E mais: "Sinais de Fogo", composta para a amiguinha Preta Gil, "Outra Vez", lindíssima versão do clássico do Rei, e "Eu Gosto é de Mulher", sucesso de 20 anos atrás do Ultraje a Rigor, agora transformado em discurso gay. Sucesso absoluto. Na parte interativa, um making of e uma rápida brincadeira intitulada "Onde está Ana?", em que a cantora se infiltra disfarçada na platéia, minutos antes de subir ao palco, e passeia incógnita entre a histeria e ansiedade dos milhares de fãs. Gol de placa da diretora Monique Gardenberg (do filme Benjamim, 2004).
Em 2005, chegou ao mercado Perfil, uma coletânea de sucessos que logo alcançou o lugar
mais alto no ranking dos mais procurados, com mais de 320 mil exemplares desaparecidos das lojas. Ana também assina "Ultra-Leve Amor", primeira música de trabalho do novo CD de Jorge Vercilo, Signo de Ar, além de outra faixa, "Abismo". Em shows recentes, já apresentou composições novas, como "Notícias Populares" (anti-violência, após o vidro de seu carro ser atingido por uma bala perdida), "Unimultiplicidade", parceria com Tom Zé anti-corrupção, "É Isso Aí" (versão para o sucessão "The Blower's Dawghter", do irlandês Damien Rice) e "Eu Gosto de Homens e de Mulheres", confissão bissexual para contrabalançar a polêmica música do Ultraje, e que entrará no próximo disco, prometido para 2006. Sobre as comparações com a música "Meninos e Meninas", de Renato Russo, Ana Carolina discorda: "O meu é mais adulto, são homens e mulheres. Meninos e meninas na verdade eu não gosto"*, diverte-se.

* entrevistas concedidas ao jornal O Globo


Fonte: Poppycorn

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