Carta Maior entrevista Ana carolina

"Mais do que minha música, eu pretendo deixar uma mensagem de liberdade para as pessoas."


Carta Maior - Você fala no DVD sobre o seu processo criativo e compara-o a um quadro que vai sendo pintado lentamente com sobreposição de camadas de cores. Contrariando isso, já houve uma canção sua que tenha nascido pronta?

Ana Carolina - Hoje eu tô sozinha nasceu pronta, inteirinha.
CM - Em outra passagem do DVD você demonstra uma preocupação com a duração de uma música. Há limitações impostas pela gravadora no que diz respeito à quantidade de músicas, ao tempo e ao jeito de cada uma?

AC - É quase um folclore esta história de gravadora interferir no processo criativo, pelo menos comigo, não sei se é porque tenho sorte ou coisa parecida. Para se ter uma idéia, durante as gravações, ninguém da gravadora apareceu no estúdio. Existe uma relação entre mim e a gravadora sem dúvida, eu lancei meus três trabalhos pela BMG, minha primeira e única gravadora até aqui. Esta música a que você se refere é a Só fala em mim que eu achava que não deveria ficar muito longa e achei que ela devia ficar com aquele tempo exato com que ficou no disco. Era uma exigência minha comigo mesmo.
CM - Você se considera uma perfeccionista?

AC - Bastante, bastante. Acho que, no fim das contas, eu nem consigo fazer uma coisa perfeita, mas eu tento, na medida do possível, fazer coisas em que eu acredito, que sejam verdade. Então, eu fico muito criteriosa, muito exigente e com vontade de que o resultado seja o que imaginei. Isso é sempre complicado.

CM - Quanto há de processos tecnológicos envolvidos na hora de compor? Ou você realmente compõe só com violão e caderno de notas?

AC - Não há processo tecnológico algum. Eu vou para o estúdio com as canções todas prontas. Bem que eu gostaria de, numa hora destas, fazer uma música dentro do estúdio. Mas eu levo a canção pronta para o estúdio para que a coisa seja feita a partir do violão: gravamos o primeiro violão, gravamos uma voz guia e depois a instrumentação vai entrando posteriormente na medida em que for sendo preciso ou cabível.
CM - E como foi estar em estúdio com o Liminha?

AC - O Liminha é um mestre. Ele tem um conhecimento arrojado de som. Ele trouxe outras atmosferas para o meu som orgânico. Eu sempre acreditei muito naquela coisa de colocar uma banda dentro do estúdio tocando ao vivo comigo, tocando junto e gravando junto e o Liminha apresentou-me a outras coisas, como programações, das quais eu tinha um pouco de preconceito, pois achava mais bacana tudo tocado ali, ao vivo. Mas, neste disco, eu dei abertura para coisas como as programações e para algumas coisas eletrônicas entrarem. Uma das canções que se destaca neste aspecto é O beat da beata que é uma música bem programada, mas que mantém uma identidade com o restante do trabalho pelo violão de nylon que está em todo o disco.

CM - Você declarou que um disco nunca fica pronto, que ele é abandonado em um dado momento. E as parcerias? Também são abandonadas?

AC - Uma vez que dois parceiros se encontram, há uma possibilidade enorme de manter contato novamente. Uma música só é muito pouco por causa da vontade que a gente tem de fazer música. Com certeza outras parcerias surgirão, não só com o Vitor Ramil, com o Chico César, com o Celso Fonseca ou com o Totonho, mas até com outras pessoas, porque eu gosto muito desta abertura, adoro trocar. Seu Jorge, por exemplo, inaugurou a parceria com duas músicas e pretendo fazer outras canções com ele também.
CM - Em Mais que isso, como foi a síntese entre a calma que o Chico César transparece e este seu jeitão mais nervoso, mais roqueiro, mais ouriçado?

AC - Eu fui comprar um violão em São Paulo na companhia do Chico César e cantarolei Mais que isso que era uma música para a qual eu já tinha feito toda a melodia e um pedacinho da letra. Ele gostou, nós fomos para a casa dele e terminamos a música juntos. Foi uma coisa muito natural, muito tranqüila. O engraçado desta parceria é que a música é toda minha e a letra é quase toda dele, mas muita gente pensa o contrário porque a música parece-se um pouco com as coisas melódicas do Chico.
CM - Como ficou bem claro no DVD, você era fã do João Bosco. Agora é sua colega. Ele mudou?

AC - Eu acho que “colega” só agrega um novo componente à “fã”. Eu não deixo de ser fã ao tornar-me colega destas pessoas que participaram do DVD. Existe uma coisa quando alguém se torna um artista conhecido, midiático, que é a crença de que, por ele agregar um grupo de pessoas como seus fãs, ele deixa de ser fã dos seus ídolos. Ali no DVD, naqueles momentos específicos que falam de comportamento, eu quis fazer, juntamente com a Mari Stockler que é a diretora do DVD, esta brincadeiras com os fãs e mostrar um pouco de quem eu sou fã, porque o fato de passar a ser colega não tira nem um pouco da admiração. Na verdade, isso só aumenta a admiração, até pela generosidade de estarem ali ao meu lado, participando do DVD.
CM - Quem conhece teu trabalho e tuas influências sabe que você já ouviu de tudo, de Lupicínio a Zé Ketti, entre os Chicos, do Buarque ao César... O que você está ouvindo agora?

AC - Eu realmente escuto muitas coisas, não só coisas novas. Eu estou escutando agora um disco antigo do Sting, o Fragil. É meio antigo, mas eu gosto de escutar estas coisas antigas. Eu não tenho muito critério para a escolha do que ouço. Há pouco tempo, eu fiz uma pesquisa ampla sobre o funk no Brasil. É uma curiosidade minha a de saber como é esta música no Brasil. Eu cheguei a ir num baile funk da Rocinha e fiquei muito impressionada com a comunicação que existe entre o funk e aquelas pessoas que estão ali dançando. Eles registram um pouco do preconceito de que são vítimas em várias músicas. Uma que me chamou muito a atenção diz: “É som de preto, é som de favelado, mas quando toca ninguém fica parado”, expressando um pouco da revolta deles. Eu me interessei muito por este discurso de reclame do funk.. Isso foi naquela época, agora estou escutando Sting... e isso não tem regra e não tem nada a ver com o momento criativo. Ouvir coisas várias e diversas me deixa com conhecimento mais amplo para criar.
CM - Sua timidez é famosa. Como foi estar o tempo todo sendo filmada para o DVD?

AC - Foi complicado. Desde o princípio, eu falei para a Mari Stockler que eu não faria nenhum mis en scène, nenhuma cena programada, que só faria aquilo que fosse realmente verdadeiro, por isso optamos por câmeras menores, assumimos possíveis desfalques no áudio, como, por exemplo, a parte do Chico César que foi gravada com uma câmera de mão pequenininha. Hoje em dia, estamos sendo filmados em toda parte: no meio das ruas, no elevador, em empresas... a gente se acostuma... e chegou uma hora que eu já estava bem acostumada com o fato de ter alguém filmando. Obviamente, eu assisti à edição (risos). No fim das contas, eu achei muito bom, muito produtivo ter no DVD o registro de, por exemplo, um momento de criação meu ali com o Chico que foi uma coisa verdadeira, muito bacana de ter registrado como a música se deu, como a música aconteceu.

CM - Você vem de uma família de músicos. Você gostaria de ter um filho músico também?

AC - Eu gostaria de saber que um filho meu fizesse música e que gostasse deste meio. Mas rola aquele medo de ter um filho e ficar imaginando que ele poderia virar músico... e se ele resolve ser arquiteto ou médico! (risos)
CM - Além da tua estética, o que você quer deixar de legado para um mundo futuro?

AC - Acima de tudo a minha liberdade. Mais do que a música, eu tenho vontade de passar para as pessoas um senso de liberdade. Eu sei que é meio clichê dizer isso, mas penso que hoje em dia é preciso ter liberdade acima de tudo. Eu vejo uma inversão de valores muito grande em todos os sentidos na atualidade, por exemplo, os jovens querem fazer uma universidade, querem formar-se. Para isso, eles têm um menu de opções: medicina, jornalismo, hotelaria etc. e acabam ficando restritos a este menu por várias questões: por grana, por imposição dos pais. Raro quem faz algo por vontade mesmo. Eu acho que primeiro nasceu a VONTADE de curar e depois uma instituição chamada medicina. Eu, por exemplo, digo por mim mesmo, abandonei o curso de Letras que era a única coisa do meu menu que me chamava mais atenção porque eu gostava de ler e isso me ajudava a fazer as letras das canções que eu sempre tanto gostei de fazer, mas eu abandonei porque, na verdade, eu queria era cantar! Enquanto eu cursava Letras, eu tocava em bares, era isso que me movia, essa VONTADE de ser música e, felizmente eu consegui virar esta história. Muitas pessoa tem uma vontade natural de exercer uma profissão, sei lá o quê... gosta de plantas e quer ser jardineiro, mas há toda uma imposição familiar, social para ser jornalista, advogado ou qualquer coisa assim institucionalizada. No campo sexual também as pessoas são muito limitadas. Eu vejo heteros que gostariam de experimentar outro tipo de relação e vejo gays que sempre foram gays e que já não conseguem experimentar uma relação hetero. As pessoas se privam de muitas coisas fundamentais por enquadramento ao sistema. Mais do que minha música, eu pretendo deixar uma mensagem de liberdade para as pessoas. Isso é o mais importante.

CM - Para atingir esta liberdade, você transgride? Você se considera uma transgressora?

AC - Eu sou uma pessoa muito à vontade e tranqüila com tudo o que faço em minha vida. Não me sinto uma transgressora. Acho que muita gente já transgrediu antes de mim. Este meu desejo de liberdade, não é um texto original, não estou criando nenhum tipo de liberdade. Para mim, a maior ofensa é ver pessoas presas dentro de esquemas.
CM - Nesta semana, o ministro Gil falou que o pandeiro é uma espécie de cartão de visita da MPB no mundo. Você como uma exímia pandeirista, o que acha disso?

AC - O samba é realmente uma coisa muito importante para o Brasil lá fora. A única coisa que me incomoda um pouco é que, em alguns momentos, os EUA, por exemplo, desejam que nós permaneçamos exóticos, pois isso faz aparentar que continuamos e continuaremos no terceiro mundo. Acho que brasileiro faz música muito bem, eu só não gosto de uma tentativa de nos deixar exóticos, como algo estranho e diferente. Nosso samba é música de raiz, que nos dignifica e que é importante para nós como exaltação da nossa cultura e não como algo que nos torne exóticos.

Fonte: Eduardo Carvalho/ Agência Carta Maior

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